segunda-feira

Só Maria - texto da escritora Lêda Rezende em homenagem ao mês da mulher

Este mês, em homenagem à Mulher teremos alguns textos da escritora Lêda Rezende no blog Delas! Mkt retratando diferentes perfis femininos.

Só Maria

por Lêda Rezende

Morara toda a vida lá. Numa cidadezinha onde a terra, o sol, a lua, a pouca chuva - eram as fronteiras e as sem-fronteiras conhecidas.

Quase criança ainda - apaixonara-se. Ele disse que iam morar juntos. Que ia cuidar dela. Acreditou. Talvez.

Ficou grávida. Nem moraram juntos. Nem ele cuidou dela. Foi não-sabe-para-onde. Um lugar por certo bem distante. Não soube mais dele. Viveu de talvez. De início - foi amparada pelos parentes. Depois - desamparada pelos mesmos parentes. Acolhida e cobrada. Não tem rima - mas tem realidade.

O corpo e a emoção - mesmo tão precoce - amadureceu. Uma noite sentiu uma dor. Talvez tivesse chegado a hora - assim falaram para ela. Foi para um pequeno hospital. Aguardou sentada a vez dela. Ao lado uma sacolinha de papel amarrotada - com as poucas roupas que lhe deram. Depois a deitaram numa cama com um lençol amarelado. Ficou ali por algum tempo. Chorou de dor. Suou de temor. Tremeu. Implorou. Pediu. Suplicou.

Nasceu. Menino. Bem pequenino. Deu o nome do Santo do dia. Viu num calendário do hospital. Decidiu. Seria este o nome dele. Foi o primeiro nome que viu depois que ele nasceu. O Santo ajudaria. Confiou nos sinais.

Notou que estavam todos um pouco sérios. Começaram uma explicação. Curta. Mas prolongada para quem não sabia muito bem o que explicar. Assim pensou. Ele nascera com um probleminha. Mas quem sabe teria alguma solução. Talvez. Precisaria de muitos exames. Na cidadezinha não havia possibilidade.

Ai começa a tecer a poesia dela. Com a ajuda de amigos e vizinhos conseguiu uma consulta numa cidade próxima. Talvez melhor equipada. Foi com o filho. Sozinhos. Nada concluíram. Nem diagnóstico. Nem prognóstico. Aconselharam a ir a um grande centro. Até se surpreendeu. Para ela - ali era um grande centro. Nāo sabia dos maiores. O mundo dela estava todo ali - naquela cidade que sempre entendeu como suficiente.

Não era. Deveria seguir - se pudesse. Aceitou. Seguiria.

De versinho em versinho chegou até a cidade grande. Enorme. Uma viagem longa. Difícil. Mas enfrentou. Todo o tempo. Noite e dia sem dormir. Cuidava do filho no espaço minúsculo do assento do ônibus onde estava.

Trazia numa carterinha um bilhete de uma amiga. Um parente distante morava na tal cidade enorme. Avisou - quem sabe lhe ajuda. Sentiu a repetição. De início foi amparada. Depois desamparada. Desta vez já conhecia esta rotina. Compreendeu. Agradeceu.

Se quando chegou nem sabia bem onde - rapidamente aprendeu alguns trajetos. Depois de um tempo já se localizava com alguma facilidade. E as idas e vindas ao atendimento no Hospital recomendado passaram a fazer parte do cotidiano. Com o filho. Muitas noites se sentiu igual a ele. Sem prognóstico. Mas aguardou. Até para desistir tem que haver possibilidade de escolha. Não tinha escolha - não desistiria. E não necessariamente nesta ordem.

Nesta manhã sentou-se com o filho no colo diante do médico. Mais uma consulta. Estava muito magra. Tinha os músculos dos braços bem marcados. Era bem jovem ainda. Mas as marcas da pele desconsideravam a cronologia. Ou o contrário. As mãos rudes e ásperas pareciam leves. Tocava os poucos cabelos do filho com muita suavidade.

Sentada com ele no colo escutou o que buscara. Uma certeza. Qualquer uma serviria. Não queria administrar os não-sei. Não suportaria mais - talvez. O saber lhe dava nomes. Diminuía a angústia. Permitia o medo. Medo é mais fácil de assimilar porque já se sabe do que é. Na angústia fica-se balançando numa dor que não tem vínculo. Estava cansada de talvez.

Definido. A doença era sem resgate. Haveria uma aparente evolução física normal - tempo de calmaria. Assim tentava entender. Depois uma queda na evolução natural - até a fase terminal. Não seria muito curta. Mas também não seria muito longa. Passaria por vários estágios. Seriam necessárias algumas intervenções. Algumas mais complicadas. Outras mais simples. Mas faria muitas delas.

Foi-lhe dito assim. Com delicadeza. Mas com a sinceridade necessária. Escutou atenta e silenciosa.

Abraçou o filho. Sorriu para ele. Disse com um sotaque forte. Vamos tocando a vida. Já chegamos até aqui. Parecia impossível. E já chegamos. Agora vamos continuar.

Consegui um lugar para nós dois morarmos. E um trabalho que posso também ficar com ele. Vou ficar. Não volto mais para lá. Aqui ele terá melhores cuidados. De onde vim - vai ter nunca o que tem aqui. Falou e olhou em volta. Para cima. Para as paredes. Deu a impressão de que olhava toda a cidade. Daquela cadeirinha onde estava sentada – visualizava a Geografia. Um vôo além do marcado. Dimensionava o espaço numa forma de reduzi-lo. Do tempo já entendera. E não queria mais discussão sobre quanto. Nem quando. Escolhera apenas o onde. Isso era o que entenderia dali em diante. Do onde.

Falou com a métrica certa. Uma estrofe perfeita. Onde as palavras faziam marcações corretas. Não havia queixa. Não destacava lamentos. Muito menos referência a sorte. Ou à falta dela. Havia emoção. Solidão. Intenção. Ela era toda a atemporalidade.

Quando levantou sorriu com ar de criança. Talvez o único fragmento em que a idade cronológica se igualou à aparente. Pareceu tão frágil. Tão assustada. Mas se recompôs rápido. No instante seguinte já carregava o filho. A esperança. As certezas. E a força - visível nas veias dilatadas do braço fino - mas musculoso.

Na sacola de tecido bege que segurava - tinha o desenho de uma flor.

Tinha dor. Mas tinha flor. Tinha rima. Tinha certeza. Tinha valor. Tinha clareza. Tinha pranto. Tinha Santo. Ele a abandonara. Ele tinha nascido. Fizera-se mulher. Era mãe. Mudara-se imigrante. Tinha emprego. E endereço.

Encerrou o atendimento afirmando - somando tudo - tenho tanto.